quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

( jogo de sombras )


lugar de sombras
que encontro

só num lugar
de sombras

que não existe
em nenhum lugar

sem sombras
que não encontro

neste lugar
que assombro

à luz do dia
à espera

da sombra
que teima

em me iluminar
como se sombra

pudesse outra
desassombrar!

domingo, 14 de fevereiro de 2010

( dois exercícios sobre um tema )

Um fato curioso ocorreu comigo em 2003, se não me engano. Escrevi um poema sobre a palavra que falta quando você está estruturando um texto, principalmente no meu caso que sempre optei pelo verso mínimo, magro e seco.
Foi então que fiz o texto abaixo:

aquela que falta

busca-se inutilmente
na gramática
sua função
desdobramentos
verbo / tempo
elasticidade


origens.


construção rochosa
sedimentando
estigmas
organizando-se
partícula por partícula
elemento sólido


imóvel.


prótese ausente
no esqueleto
rígido
do poema
gerado
de um fóssil

bíblico.

................x...............

Muito bem, meses depois enviei-o entre outros textetos para um concurso literário no interior de Sâo Paulo. Nada, não devem ter gostado.
Então, no ano seguinte vi novamente o anúncio daquele concurso e resolvi fazer uma sacanagem ingênua. Pensei: estes jurados conservadores gostam mesmo é de poemas grandes, prolixos, metidos a besta, então lá vai. Reescrevi o texto numa outra estrutura, com várias estrofes, versos mais longos, etc. Enchi linguiça, na linguagem popular.
Resultado: o texto foi classificado em oitavo entre os vinte melhores do concuros, foi publicado em livro e tudo mais. Achei graça. Valeu o exercício para desmascarar a comissão julgadora...
Confiram como ficou:

Aquela que falta 2

no tenso vocabulário dos relâmpagos,
nas artérias e sulcos da terra desértica
ou na escrita de signos dos pergaminhos
a essência clássica da sua ausência

busca-se inutilmente nos alfabetos e línguas
de todas as tribos e civilizações perdidas,
até mesmo no dialeto de deuses mortos,
uma sombra ou poeira das suas sílabas

nem mesmo nos antigos manuais dos bruxos
ou nas obras imortais de mestres da literatura
uma só pista da sua existência ou função,
tampouco resíduos de seus desdobramentos

jamais se saberá se era sinônimo ou verbo,
como também não se analisará o seu tempo
ou se medirá a elasticidade e a estrutura
da sua bestial fonética, palavra árida;

nos mapas geológicos da vida mineral,
nos túneis mais profundos das minas
ou nas densas entranhas das cavernas
as digitais inexistentes do seu enigma

busca-se vestígios na construção rochosa
e nas gargantas magmáticas de um vulcão,
por mais extinta que seja a sua memória,
uma partícula qualquer do seu léxico

nem mesmo nos prismas transparentes
de cristais em brasa à flor da terra
um só grão da sua areia alfabética,
sequer uma lasca mínima da sua fúria

jamais se conhecerá a sua ação temporal
sedimentando estigmas e organizando-se,
partícula por partícula, no corpo imóvel
de um elemento sólido, palavra pedra;

no imensurável silêncio dos templos,
na liturgia universal dos mil cultos
ou nas benditas orações de povos vários
a sagrada lacuna da sua mística falta

busca-se apenas um simples monossílabo
nos rituais dos sacerdotes e na fé dos crentes,
ou mesmo na leitura labial das suas súplicas
que se evaporam na acústica das naves

nem mesmo nas catacumbas mais secretas
ou no cético bolor das bibliotecas profanas
uma só menção da sua secular blasfêmia,
tampouco traços de sangue do seu nome

jamais se conhecerá dela uma só vértebra,
pois será sempre aquela prótese ausente
no esqueleto imaginário de um salmo,
feito um fóssil bíblico, palavra óssea .

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

ultrapasse-me
vânia
com a lâmina
do seu
lábio
inferior
lilás.
romantismo roxo


em brasília
os emos
saltam da torre
do shopping

morrem
de amor
explicam
os jovens

até gostaria
de ser emo
para morrer
de amor

mas já
sou velho
e tenho
vertigem.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

libido
de castigo
repete
dez vezes
o desejo
que lhe
queima:

a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca
a sua boca

amém!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

( morte após morte )


quando morri
apareceu um
repentista
que fez
um improviso
torto:


depois da morte
tem uma
estrada
após o fim
tem um começo


a estrada
leva
sua alma
para o fim
do seu começo.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

roteiro das tempestades

( poema de 1989 revisitado )


as avós
fazem
tricô


enquanto
o céu tece
relâmpagos.


as mulheres
fertilizam
barrigas


os meninos
sonham
e morrem


pequeninos
com medo
de trovão


fim de tarde
um arco-íris
desbotado


tendo
ao fundo
coriscos


raios
que nos
partam!


para início
de conversa
continuamos


solitários
dançando
na chuva.

taquaraçugeneris

o quintal repete
a mansidão
da selva
cana lâmina
sanhaços em fúria
devorações

o rio sonolento
faz a leitura
do seu curso
relendo a cidade
que passa
lenta

um céu de tédio
azul assombrado
com periquitos
a brisa embala
nas mangueiras
desejos de fuga

a tarde cai
desesperadamente
em vermelho
vento engarrafado
naquela estranha
tristeza

fogo pagô!

ponto

o sol
nos
pelos

o sol
no
centro

entre suas
coxas
brancas

mar vermelho.
( poema que deveria ser visual mas acabou falado )

PATO FU
PATO FUNK
PATO FU
PATO FUCK YOU
PATO FU
PATO FUMANCHU
PATO FU
PATO FUNK YOU

noite

noite
em claro

lapsos
de memória

nos clarões

noite
lapsos

branco
na memória

aos borbotões

a literatura não basta

o poeta rimbaud
decidiu ser
gauche na vida

viajou anos a fio
pelos desertos
africanos

vendendo armas
escurecendo
a pele

acabou morrendo
solitário
desiluminado

depois de uma
temporada
no inferno.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A linguagem clara de Bandeira

Memórias


paredes
de cal
e rancor

janelas
trancando
a luz

portais
sustentando
angústias

dos restos
o resumo
da obra:

melancolia
de cupins
impunes.


Anorexias


crianças
esqueléticas
sonham

big-mac
com fritas
coca-cola

miséria social
é o lado ruim
da fome

pensa a
jovem
modelo.


Pequenos registros em hortas e jardins urbanos


vidraças opacas
sintonizam
besouros

lagartixas graves
sentenciam
vôos tediosos

roseiras rubras
sugerem
saúvas negras

tática de teias
aranhas
adjetivas

melancolia
de lesmas
nas begônias

soníferas lagartas
sonham
espessuras

insetos verbais
tamanha
gramática

taturanas
substantivas
natureza tenaz.


Confissão


nunca desejei
ossos
em meus
versos

nunca enxertei
épicos
em meus
textos

sempre busquei
a linguagem
clara

como nos
escritos de
Bandeira

embora nunca
consegui
tê-la.

Orelha drumondária

não tive
filhos
não tive
gado


apenas algumas
vaquinhas
vêm pastar
a grama
em frente
à minha casa


lembro-me
de Drumond
sólido urbano
gauche na vida
sentado
à beira-mar
de Copacabana.

No inferno também neva

I

Pouco

toda contenção
estética
provoca secura
na garganta
poesia de baixa
umidade

peço a deus
uma prosa densa
tensionada
por rimas
sutis
nas entrelinhas

mas ele não
me ouve
então purgo
meus pecados
neste deserto
textual

sacrifico palavras
em tempestades
de areia
louvo o corpo
anêmico
deste poema


(mínimo).


II

Cristal líquido


o criador
a criatura

suas sombras
se perturbam

o real
o imaginário

suas formas
se costuram

o real
o virtual

água e óleo
se misturam.


III


Epílogo brasiliense


a cidade morre
no domingo
mais estranha
do que tensa

pombos devoram
restos de civilização
em vias desertas
transversais

o silêncio paira
na gravidade
dos subterrâneos
sem homens

sons do vazio
reverberam
imagens do nada
nos prédios

melancolia fria
sobre a geometria
que se encerra
em ângulos retos

tudo se finda
um sol estúpido
estanca a liquidez
da tarde.


IV


Biografia humana


corpo
capítulo
cadáver


espírito
escárnio
ex-carne


terra
aterro
enterro


resumo
resto
resíduo


fosso
osso
fóssil.


V


Livro da morte


no manuscrito
original
sobre a morte


nos escombros
da biblioteca
de alexandria


boas novas
para os
pecadores


o paraíso é tropical
mas no inferno
também neva.

O bom e velho poema piada

muito cedo descobri
que o poema
pode ser piada

mais tarde, por decência,
apliquei-lhe
alguns beletrismos

rococós inúteis
só para ficar
bacana

o verso seco
virou metáfora
substantivo sofisticado

o tiro saiu pela culatra
a palavra solta
ficou travada

o texto antes contido
padece obeso
superalimentado

será que é tarde
para retornar
ao velho poema piada

neste ofício diário

de obreiro de coisas
que não servem
para nada?

poema quase e outros quase poemas

poema quase


um poema quase
é um estalo
que não expande

tem a idéia
mas não
a estrutura

ultrapassa o nada
mas não chega
ao tudo

um poema quase
esbarra no limite
da composição

tem a cabeça
mas falta-lhe
os pés

alguma forma
pouco
conteúdo.


Sentimentos

rancor é algo
que não
requer

frescor

ou ar
refrigerado


ressentimento?

sirva
gelado.


obscuro enigma


quem morre
dormindo
continua sonhando?


Fazeres


reflita sempre
sobre
velhos fazeres

das tripas
coração

do limão
limonada

não responda
nunca
velhas indagações

quantos paus
uma jangada?