domingo, 14 de fevereiro de 2010

( dois exercícios sobre um tema )

Um fato curioso ocorreu comigo em 2003, se não me engano. Escrevi um poema sobre a palavra que falta quando você está estruturando um texto, principalmente no meu caso que sempre optei pelo verso mínimo, magro e seco.
Foi então que fiz o texto abaixo:

aquela que falta

busca-se inutilmente
na gramática
sua função
desdobramentos
verbo / tempo
elasticidade


origens.


construção rochosa
sedimentando
estigmas
organizando-se
partícula por partícula
elemento sólido


imóvel.


prótese ausente
no esqueleto
rígido
do poema
gerado
de um fóssil

bíblico.

................x...............

Muito bem, meses depois enviei-o entre outros textetos para um concurso literário no interior de Sâo Paulo. Nada, não devem ter gostado.
Então, no ano seguinte vi novamente o anúncio daquele concurso e resolvi fazer uma sacanagem ingênua. Pensei: estes jurados conservadores gostam mesmo é de poemas grandes, prolixos, metidos a besta, então lá vai. Reescrevi o texto numa outra estrutura, com várias estrofes, versos mais longos, etc. Enchi linguiça, na linguagem popular.
Resultado: o texto foi classificado em oitavo entre os vinte melhores do concuros, foi publicado em livro e tudo mais. Achei graça. Valeu o exercício para desmascarar a comissão julgadora...
Confiram como ficou:

Aquela que falta 2

no tenso vocabulário dos relâmpagos,
nas artérias e sulcos da terra desértica
ou na escrita de signos dos pergaminhos
a essência clássica da sua ausência

busca-se inutilmente nos alfabetos e línguas
de todas as tribos e civilizações perdidas,
até mesmo no dialeto de deuses mortos,
uma sombra ou poeira das suas sílabas

nem mesmo nos antigos manuais dos bruxos
ou nas obras imortais de mestres da literatura
uma só pista da sua existência ou função,
tampouco resíduos de seus desdobramentos

jamais se saberá se era sinônimo ou verbo,
como também não se analisará o seu tempo
ou se medirá a elasticidade e a estrutura
da sua bestial fonética, palavra árida;

nos mapas geológicos da vida mineral,
nos túneis mais profundos das minas
ou nas densas entranhas das cavernas
as digitais inexistentes do seu enigma

busca-se vestígios na construção rochosa
e nas gargantas magmáticas de um vulcão,
por mais extinta que seja a sua memória,
uma partícula qualquer do seu léxico

nem mesmo nos prismas transparentes
de cristais em brasa à flor da terra
um só grão da sua areia alfabética,
sequer uma lasca mínima da sua fúria

jamais se conhecerá a sua ação temporal
sedimentando estigmas e organizando-se,
partícula por partícula, no corpo imóvel
de um elemento sólido, palavra pedra;

no imensurável silêncio dos templos,
na liturgia universal dos mil cultos
ou nas benditas orações de povos vários
a sagrada lacuna da sua mística falta

busca-se apenas um simples monossílabo
nos rituais dos sacerdotes e na fé dos crentes,
ou mesmo na leitura labial das suas súplicas
que se evaporam na acústica das naves

nem mesmo nas catacumbas mais secretas
ou no cético bolor das bibliotecas profanas
uma só menção da sua secular blasfêmia,
tampouco traços de sangue do seu nome

jamais se conhecerá dela uma só vértebra,
pois será sempre aquela prótese ausente
no esqueleto imaginário de um salmo,
feito um fóssil bíblico, palavra óssea .

Nenhum comentário:

Postar um comentário